Os símbolos no Canto Gregoriano

Neste artigo trataremos do simbolismo presente nas peças do repertório gregoriano, explorando a imensa beleza contida nesse estilo musical – e aqui não podemos limitá-lo a somente mais um estilo musical como fazem muitos autores – principalmente por sua profunda relação a vida sobrenatural e elevação da alma a Deus. Este artigo baseia-se principalmente nos excelentes trabalhos de Idalete Giga e do padre Bertrand Labouche. Sendo o homem dotado de corpo e alma, e os sentidos sendo responsáveis pela apreensão da realidade, a beleza das expressões artísticas cumpre papel fundamental para a elevação da alma a Deus. Por isso a necessidade de serem construídas belas igrejas e imagens sacras, pintados belos quadros e compostas belas músicas. Toda arte necessariamente corresponde aos ideais filosóficos e religiosos do autor que a concebeu. Em vista disso podemos concluir que foi um espírito de fé que animou a composição das peças do repertório gregoriano, uma vez que o resultado de tais obras é a expressão das perfeições e ensinamentos divinos revelados nas sagradas escrituras e nas orações compostas pela própria Igreja. Um dos aspectos de perfeição de uma peça gregoriana é a plena concordância entre o texto sagrado e a melodia. A autora do trabalho referência para este artigo se expressa quanto a este ponto nos seguintes termos: “Sendo o texto sagrado a principal fonte de inspiração do compositor (…), texto e melodia adquirem uma unidade, uma aliança quase perfeita. Esta é uma constante na composição gregoriana. ” (Giga, 1998, Hvmanitas – Vol. L, pág. 349). Assim, concluímos que a melodia serve o texto, ornando-o e carregando-o de símbolos através das fórmulas melódicas mais adequadas. Ainda segundo Giga, convém notar que foi fundamental papel da língua latina na composição do repertório gregoriano, principalmente no que toca à estrutura da melodia gregoriana. Pelo fato de não haver palavra oxítonas no latim, a sílaba final é fraca e corresponde a um repouso, denominada tésis. Por outro lado, o acento da palavra funciona como um elemento vivo, que naturalmente dá vida à melodia, ou mesmo na simples vocalização da palavra. Outro aspecto que merece destaque é quanto à métrica presente nas peças gregorianas. Ao contrário das composições modernas, onde a unidade de tempo é fracionada, no canto gregoriano parte-se da unidade fundamental, denominada punctum, para, com a junção de outras unidades fundamentais, serem obtidos o neumas. Esse processo de multiplicação a partir de uma unidade fundamental possibilidade uma maior fluidez da melodia unida ao texto. A seguir apresentaremos alguns comentários e observações de determinados trechos de peças do repertório gregoriano, mostrando como a melodia e a rítmica foram fatores fundamentais para que o autor da peça pudesse expressar adequadamente a mensagem contida no texto sagrado. Ascéndit Deus (Ofertório da Festa da Ascensão) “Ascéndit Deus in jubilatióne, et Dóminus in voce tubæ, allelúia.” “Subiu Deus entre aclamações e o Senhor ao toque da trombeta, aleluia. ” A peça inicia com uma melodia ascendente, partindo da tônica do Modo I (Ré) e chegando até sua oitava, trazendo expressando claramente o sentido literal do texto. No entanto, a progressão melódica não é abrupta, mas desenvolve-se por graus conjuntos (tórculus e podatus) e com prolongamentos expressivos (quilisma), suavizando a melodia sem lhe tirar a força. A permanência da melodia na dominante Lá também reforça o sentido de que Deus ascendeu aos céus e lá permanece. Psállite Dómino (Comunio da Festa da Ascensão) “Psállite Dómino, qui ascéndit super cælos cælórum ad Oriéntem, allelúia. ” “Cantai ao Senhor que sobe ao alto dos céus, no Oriente, aleluia. ” Semelhantemente ao ofertório, também expressando o ato da ascensão de Nosso Senhor aos céus, a melodia do trecho “qui ascéndit super” também chega à oitava do Modo I. Exsúrge, Dómine (Gradual do III Domingo da Quaresma) “Exsúrge, Dómine, non præváleat homo: judicéntur gentes in conspéctu tuo. V. In converténdo inimícum meum retrórsum, infirmabúntur, et períbunt a facie tua. ” “Levantai-Vos, Senhor, para que o homem não triunfe; sejam as nações julgadas em vossa presença. V. Os meus inimigos recuaram; eles fraquejaram e pereceram diante de Vossa face. ” A melodia inicial na região Dó-Fá, com distropha e tristophas (notas fundamentais em uníssono), dá um tom estável e ao mesmo tempo austero à peça: é a aclamação confiante daquele que roga ao Senhor que se levante sobre todos para julgá-los, mas de modo sereno. O grande desenvolvimento melódico para a última frase – a fácie túa – justifica-se pois é a visão beatífica – da face de Deus – a meta daqueles que O amam e a ocasião de julgamento e derrota dos maus. Exsúrge (Intróito da Sexagésima) “Exsúrge, quare obdórmis, Dómine? Exsúrge, et ne repéllas in finem: quare fáciem tuam avértis, oblivísceris tribulatiónem nostram? Adhǽsit in terra venter noster: exsúrge, Dómine, ádjuva nos, et líbera nos.” “Levantai; por que dormis, Senhor? Levantai, e não nos repelis para sempre; por que afastais o vosso rosto, Vos esqueceis da nossa tribulação? Aderido com a terra está o nosso ventre; levantai, Senhor, socorrei-nos e libertai-nos.” O caráter de súplica – Exsúrge – permeia toda a peça. A primeira exclamação é pesada e despretensiosa, como que pronunciada por aquele que está oprimido e não tem forças para lutar. A segunda, atrelada à invocação do próprio Senhor, apresenta maior brilho pela ascensão da melodia até a nota Lá e a leve descida até a nota Fá; é suave e demonstra uma maior confiança. Finalmente, a última exclamação é ardente, impetuosa (resultado da melodia silábica), constituindo o ápice da súplica. Finalizando, trazemos um comentário sobre o intróito Ressuréxi, da Missa de Páscoa, feito por Dom Gajard, mestre de coro de Solesmes e grande estudioso do canto Gregoriano. Para exemplificar a profundidade do conhecimento e da percepção que Dom Gajard tinha sobre o canto Gregoriano, narraremos um fato ocorrido na abadia de Saint Pierre de Solesmes. Enquanto celebrava a Missa, seu acólito percebeu que demorava mais do que o costume na leitura do Gradual, por isso interrompeu-o perguntando se estava se sentindo bem. Dom Gajard respondeu: “Não. Eu não estava compreendendo

Lauda Sion Salvatorem: Canto Sacro, Beleza e Conteúdo Doutrinário

Ao nos aproximarmos da solenidade de Corpus Christi, veio-nos à mente a importância desta grande festa e a grande estima da Igreja por tudo aquilo que serve para ornar o Santo Sacrifício da Missa. No ano de 1264, pela bula Transiturus de hoc mundo, o papa Urbano IV instituiu a festa de Corpus Christi; nesse mesmo ano convocou uma seleção de mestres em teologia para que compusessem o Ofício para a festa, bem como o Próprio da Missa. Entre os convocados estavam São Boaventura e São Tomás de Aquino, dois dos maiores expoentes da Igreja naquele momento, seja pela inteligência e pureza de doutrina, seja pelas virtudes que praticavam. São Tomás foi o primeiro a expor os textos compostos, iniciando pela sequência Lauda Sion Salvatorem. Após a recitação da sequência, São Boaventura rasgou suas composições, e em seguida todos os demais presentes imitaram-no. A composição de São Tomás, um primor de beleza literária e pureza doutrinal, foi rezada, cantada e meditada durante séculos por todos os católicos, infundindo em clérigos e fiéis a certeza da presença real de Nosso Senhor Jesus Cristo sob as espécies do pão e do vinho. Antes de tecermos alguns comentários sobre o canto litúrgico, um dos principais elementos embelezadores da liturgia, citaremos Pio XII na encíclica Mediator Dei: “Todo o conjunto do culto que a Igreja rende a Deus deve ser interno e externo. É externo porque o exige a natureza do homem composto de corpo e alma; porque Deus dispõe que “pelo conhecimento das coisas visíveis sejamos atraídos ao amor das invisíveis” (Missal Rom., Prefácio da Natividade); porque tudo o que vem da alma é naturalmente expresso pelos sentidos; e ainda porque o culto divino pertence não somente ao particular mas também à coletividade humana e consequentemente é necessário que seja social, o que é impossível, no âmbito religioso, sem vínculos e manifestações exteriores; e, enfim, porque é um meio que põe particularmente em evidência a unidade do corpo místico, acrescenta-lhe santos entusiasmos, consolida-lhe as forças, intensifica-lhe a ação: “se bem que, com efeito, as cerimônias, em si mesmas, não contenham nenhuma perfeição e santidade, são todavia atos externos de religião que, como sinais, estimulam a alma à veneração das coisas sagradas, elevam a mente à realidade sobrenatural, nutrem a piedade, fomentam a caridade, aumentam a fé, robustecem a devoção, instruem os simples, ornam o culto de Deus, conservam a religião e distinguem os verdadeiros dos falsos cristãos e dos heterodoxos.( I. Card. Bona, De divina psalmodia, c 19, § 3,1.)” [1] Em vista disso podemos concluir a importância de se empregar aquilo que é mais belo na liturgia, de modo que esta seja ainda mais dignificada e possa edificar aquelas pessoas que a presenciam. Em nosso infeliz tempo, em que a dita Missa “Ordinária” predomina nas dioceses, temos uma triste realidade: aquele ornamento – o canto gregoriano – que foi cantado durante mais de 700 anos é desprezado e substituído por composições de extrema pobreza musical. Tivemos acesso a uma seleção de músicas para a Missa de Corpus Christi através do site “Cantos para Missas” [2]. Escutá-las nos causou grande decepção e uma profunda tristeza ao constatarmos a pobreza artística de tais composições e o desprezo por tudo aquilo que a Igreja sempre cantou. Compararemos a sequência “Terra, exulta de alegria”, que consta no Lecionário Dominical – obviamente com letra em português – e musicada pela Ir. Míria T. Kolling [2] com a sequência Lauda Sion Salvatorem, composta por São Tomás. O arranjo de “Terra, exulta de alegria” foi feito em compasso ternário, resultando em uma valsa, ritmo musical já condenado pela Igreja devido ao modo como é dançado. Infelizmente, em nossos dias, a valsa não passa de uma dança inocente quando comparada com outras. Porém, na época de sua criação, servindo como música para bailes, foi fortemente condenada por seu forte apelo sensual e por corromper os costumes da sociedade [3]. Seu apelo rítmico, induzindo o ouvinte ao movimento dançante, em nada favorece a oração, essa tão necessária para o progresso espiritual dos fiéis. Acompanha a execução, além dos instrumentos de harmonia, uma flauta transversal, executando uma linha melódica bastante distinta da melodia principal. Essa característica da peça, somada ao fato de as duas linhas melódicas serem executadas em paralelo, provoca uma distração no ouvinte, fator também bastante prejudicial. Além disso podemos acrescentar o sentimento de nostalgia trazido pela melodia executada, bastante romântica por sinal. Por outro lado, a sequência composta por São Tomás expressa em seu texto um vasto conteúdo doutrinário e devocional. Toda a análise exposta neste artigo foi extraída do excelente trabalho do músico Thiago Plaça Teixeira, autor da dissertação intitulada “Música e Beleza em São Tomás de Aquino” [5].   A sequência Lauda Sion Salvatorem está estrutura do seguinte modo [6]:   i) Os versos 1 a 15 ordenam-se ao louvor do Santíssimo Sacramento; ii) Nos versos 16 a 30 demonstra-se por que razão sua instituição é comemorada; iii) Nos versos 31 a 62 há um detalhamento da doutrina católica sobre o Santíssimo Sacramento; iv) Com os versos 63 a 70 mostra-se o cumprimento das diversas figuras do Antigo testamento; v) Por fim, com os versos 71 a 80, pede-se a Cristo que nos alimente, nos guarde e nos torne participantes do banquete Eterno.   Com relação à estrutura métrica presente nos versos temos o seguinte o esquema [7]:   Versos Métrica 1 – 5 8-8-7 6 10-10-7 7 8-8-7 8 7-7-7 9 – 18 8-8-7 19 – 22 8-8-8-7 23 – 24 8-8-8-8-7 Tabela 1 – Estrutura métrica da sequência Lauda Sion Salvatorem A partir da análise do conteúdo e da estrutura métrica da sequência Lauda Sion Salvatorem, chega-se a algumas conclusões: – O conteúdo doutrinário está organizado de modo bastante conveniente ao entendimento daquele que o acessa pois responde de modo ordenado às principais questões que envolvem a Eucaristia: o que ela é, porque deve ser adorada e sua relação com as figuras do Antigo Testamento. Adicionalmente temos a exposição da doutrina católica sobre o tema

Canto Gregoriano: a música sacra por excelência

Bento XVI: “Desejo (…)que se valorize adequadamente o canto gregoriano, como canto próprio da liturgia romana” (Sacramentum Caritatis). Nesse artigo buscaremos demonstrar, de forma bastante resumida, o valor dado pela Igreja Católica ao Canto Gregoriano, hoje posto de lado na maioria das paróquias, substituído por músicas compostas em péssimos estilos, o que contraria não somente as regras de estética musical, mas também disposições legais da própria Igreja. Muitos em nossos dias, mesmo considerando-se católicos, desprezam aquele que foi definido pelo Papa São Pio X como “o canto próprio da Igreja Romana.” (Motu Próprio Tra le Sollicitude, nº 3). A música sacra é parte integrante da solene liturgia, visando a glória de Deus e santificação de todos os fiéis (Tra le Sollicitude, nº 1). Para atingir seus objetivos ela “deve possuir, em grau eminente, as qualidades próprias da liturgia, e nomeadamente a santidade e a delicadeza das formas, donde resulta espontaneamente outra característica, a universalidade. Deve ser santa, e por isso excluir todo o profano não só em si mesma, mas também no modo como é desempenhada pelos executantes. Deve ser arte verdadeira, não sendo possível que, doutra forma, exerça no ânimo dos ouvintes aquela eficácia que a Igreja se propõe obter ao admitir na sua liturgia a arte dos sons. Mas seja, ao mesmo tempo, universal no sentido de que, embora seja permitido a cada nação admitir nas composições religiosas aquelas formas particulares, que em certo modo constituem o caráter específico da sua música própria, estas devem ser de tal maneira subordinadas aos caracteres gerais da música sacra que ninguém doutra nação, ao ouvi-las, sinta uma impressão desagradável.” (Tra le Sollicitude, nº 2). Nesse Motu Proprio, São Pio X afirma que o canto gregoriano possui tais qualidades em mais alto grau, do que resulta ser o canto próprio da Igreja Romana. Desse modo deve ser considerado como o modelo a ser seguido pela música sacra, o que é expresso na seguinte norma estabelecida pelo Pontífice: “uma composição religiosa será tanto mais sacra e litúrgica quanto mais se aproxima no andamento, inspiração e sabor da melodia gregoriana, e será tanto menos digna do templo quanto mais se afastar daquele modelo supremo.” (Tra le Sollicitude, nº 3). Outro pontífice a tratar desse tema foi Pio XII na Encíclica Mediator Dei: “O canto gregoriano que a Igreja romana considera coisa sua, porque recebido da antiga tradição e guardado no correr dos séculos sob a sua cuidadosa tutela e que propõe aos fiéis como coisa também deles, prescrito como é de modo absoluto em algumas partes da liturgia, não só acrescenta decoro e solenidade à celebração dos divinos mistérios, antes contribui extremamente até para aumentar a fé e a piedade dos assistentes.” (Mediator Dei, nº 176). Em outra encíclica, o Papa Pio XII relembra os ensinamentos de São Pio X sobre as qualidades que o canto gregoriano possui em mais alto grau e trata especificamente da santidade: “A essa santidade se presta sobretudo o canto gregoriano, que desde tantos séculos se usa na Igreja, a ponto de se poder dizê-lo patrimônio seu. Pela íntima aderência das melodias às palavras do texto sagrado, esse canto não só quadra a este plenamente, mas parece quase interpretar-lhe a força e a eficácia, instilando doçura na alma de quem o escuta; e isso por meios musicais simples e fáceis, mas permeados de tão sublime e santa arte, que em todos suscitam sentimentos de sincera admiração, e se tornam para os próprios entendedores e mestres de música sacra uma fonte inexaurível de novas melodias.” (Musicae Sacrae Disciplina, nº 20). Dispensaremos aqui a redação de uma conclusão própria e finalizaremos esse breve artigo citando as palavras do papa emérito Bento XVI, na Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis: “Verdadeiramente, em liturgia, não podemos dizer que tanto vale um cântico como outro; a propósito, é necessário evitar a improvisação genérica ou a introdução de géneros musicais que não respeitem o sentido da liturgia. Enquanto elemento litúrgico, o canto deve integrar-se na forma própria da celebração; consequentemente, tudo — no texto, na melodia, na execução — deve corresponder ao sentido do mistério celebrado, às várias partes do rito e aos diferentes tempos litúrgicos. Enfim (…), desejo — como foi pedido pelos padres sinodais — que se valorize adequadamente o canto gregoriano, como canto próprio da liturgia romana.” (Sacramentum Caritatis, nº 42). Share on facebook Share on twitter Share on whatsapp Share on email