Ao nos aproximarmos da solenidade de Corpus Christi, veio-nos à mente a importância desta grande festa e a grande estima da Igreja por tudo aquilo que serve para ornar o Santo Sacrifício da Missa.
No ano de 1264, pela bula Transiturus de hoc mundo, o papa Urbano IV instituiu a festa de Corpus Christi; nesse mesmo ano convocou uma seleção de mestres em teologia para que compusessem o Ofício para a festa, bem como o Próprio da Missa. Entre os convocados estavam São Boaventura e São Tomás de Aquino, dois dos maiores expoentes da Igreja naquele momento, seja pela inteligência e pureza de doutrina, seja pelas virtudes que praticavam.
São Tomás foi o primeiro a expor os textos compostos, iniciando pela sequência Lauda Sion Salvatorem. Após a recitação da sequência, São Boaventura rasgou suas composições, e em seguida todos os demais presentes imitaram-no. A composição de São Tomás, um primor de beleza literária e pureza doutrinal, foi rezada, cantada e meditada durante séculos por todos os católicos, infundindo em clérigos e fiéis a certeza da presença real de Nosso Senhor Jesus Cristo sob as espécies do pão e do vinho.
Antes de tecermos alguns comentários sobre o canto litúrgico, um dos principais elementos embelezadores da liturgia, citaremos Pio XII na encíclica Mediator Dei: “Todo o conjunto do culto que a Igreja rende a Deus deve ser interno e externo. É externo porque o exige a natureza do homem composto de corpo e alma; porque Deus dispõe que “pelo conhecimento das coisas visíveis sejamos atraídos ao amor das invisíveis” (Missal Rom., Prefácio da Natividade); porque tudo o que vem da alma é naturalmente expresso pelos sentidos; e ainda porque o culto divino pertence não somente ao particular mas também à coletividade humana e consequentemente é necessário que seja social, o que é impossível, no âmbito religioso, sem vínculos e manifestações exteriores; e, enfim, porque é um meio que põe particularmente em evidência a unidade do corpo místico, acrescenta-lhe santos entusiasmos, consolida-lhe as forças, intensifica-lhe a ação: “se bem que, com efeito, as cerimônias, em si mesmas, não contenham nenhuma perfeição e santidade, são todavia atos externos de religião que, como sinais, estimulam a alma à veneração das coisas sagradas, elevam a mente à realidade sobrenatural, nutrem a piedade, fomentam a caridade, aumentam a fé, robustecem a devoção, instruem os simples, ornam o culto de Deus, conservam a religião e distinguem os verdadeiros dos falsos cristãos e dos heterodoxos.( I. Card. Bona, De divina psalmodia, c 19, § 3,1.)” [1] Em vista disso podemos concluir a importância de se empregar aquilo que é mais belo na liturgia, de modo que esta seja ainda mais dignificada e possa edificar aquelas pessoas que a presenciam.
Em nosso infeliz tempo, em que a dita Missa “Ordinária” predomina nas dioceses, temos uma triste realidade: aquele ornamento – o canto gregoriano – que foi cantado durante mais de 700 anos é desprezado e substituído por composições de extrema pobreza musical.
Tivemos acesso a uma seleção de músicas para a Missa de Corpus Christi através do site “Cantos para Missas” [2]. Escutá-las nos causou grande decepção e uma profunda tristeza ao constatarmos a pobreza artística de tais composições e o desprezo por tudo aquilo que a Igreja sempre cantou.
Compararemos a sequência “Terra, exulta de alegria”, que consta no Lecionário Dominical – obviamente com letra em português – e musicada pela Ir. Míria T. Kolling [2] com a sequência Lauda Sion Salvatorem, composta por São Tomás.
O arranjo de “Terra, exulta de alegria” foi feito em compasso ternário, resultando em uma valsa, ritmo musical já condenado pela Igreja devido ao modo como é dançado. Infelizmente, em nossos dias, a valsa não passa de uma dança inocente quando comparada com outras. Porém, na época de sua criação, servindo como música para bailes, foi fortemente condenada por seu forte apelo sensual e por corromper os costumes da sociedade [3]. Seu apelo rítmico, induzindo o ouvinte ao movimento dançante, em nada favorece a oração, essa tão necessária para o progresso espiritual dos fiéis. Acompanha a execução, além dos instrumentos de harmonia, uma flauta transversal, executando uma linha melódica bastante distinta da melodia principal. Essa característica da peça, somada ao fato de as duas linhas melódicas serem executadas em paralelo, provoca uma distração no ouvinte, fator também bastante prejudicial. Além disso podemos acrescentar o sentimento de nostalgia trazido pela melodia executada, bastante romântica por sinal.
Por outro lado, a sequência composta por São Tomás expressa em seu texto um vasto conteúdo doutrinário e devocional. Toda a análise exposta neste artigo foi extraída do excelente trabalho do músico Thiago Plaça Teixeira, autor da dissertação intitulada “Música e Beleza em São Tomás de Aquino” [5]. A sequência Lauda Sion Salvatorem está estrutura do seguinte modo [6]: i) Os versos 1 a 15 ordenam-se ao louvor do Santíssimo Sacramento; ii) Nos versos 16 a 30 demonstra-se por que razão sua instituição é comemorada; iii) Nos versos 31 a 62 há um detalhamento da doutrina católica sobre o Santíssimo Sacramento; iv) Com os versos 63 a 70 mostra-se o cumprimento das diversas figuras do Antigo testamento; v) Por fim, com os versos 71 a 80, pede-se a Cristo que nos alimente, nos guarde e nos torne participantes do banquete Eterno. Com relação à estrutura métrica presente nos versos temos o seguinte o esquema [7]:
Versos | Métrica |
1 – 5 | 8-8-7 |
6 | 10-10-7 |
7 | 8-8-7 |
8 | 7-7-7 |
9 – 18 | 8-8-7 |
19 – 22 | 8-8-8-7 |
23 – 24 | 8-8-8-8-7 |
A partir da análise do conteúdo e da estrutura métrica da sequência Lauda Sion Salvatorem, chega-se a algumas conclusões:
– O conteúdo doutrinário está organizado de modo bastante conveniente ao entendimento daquele que o acessa pois responde de modo ordenado às principais questões que envolvem a Eucaristia: o que ela é, porque deve ser adorada e sua relação com as figuras do Antigo Testamento. Adicionalmente temos a exposição da doutrina católica sobre o tema e súplicas a Jesus, o Bom Pastor das almas.
– Além de as palavras escolhidas expressarem o conteúdo doutrinal e devocional desejado, há inúmeras relações de semelhança ao longo dos versos, demonstrando um esforço de São Tomás para que a composição também expressasse uma ordem interna consoante suas próprias conclusões acerca do conceito de beleza. Tais relações de semelhança se dão em termos de duração temporal e de intensidade, através do número de sílabas e da repetição dos padrões de acentuação, respectivamente.
– Conforme exposto na Tabela 1, há um certo padrão no número de sílabas, de versos e de rimas, que repetem-se praticamente ao longo de toda a peça, somente ocorrendo alterações propositais desse padrão em momentos específicos. Para justificar essa afirmação podemos citar como exemplo o que ocorre na estrofe 6, quando há um aumento no número de sílabas dos versos (10-10-7) e uma mudança na direção melódica até então predominante. Nessa estrofe há uma referência direta à festa de Corpus Christi: Dies enim solémnis ágitur, in qua mensae prima recólitur, hujus institútio (É hoje a solene festa, que nos recorda o que atesta a sagrada instituição). Em vista disso fica patente o motivo dessas mudanças, que é realçar a importância do verso e dar-lhe um tom mais solene – expresso aí principalmente pelas notas mais graves.
Com relação ao aspecto melódico temos ainda outras considerações, entre as quais:
– Utilização de intervalos consonantes (4a justa, 5a justa e 8a justa), em especial nos saltos ascendentes, nos pontos de conclusão das frases e nas passagens entre a última nota de uma estrofe para a primeira da estrofe seguinte.
– Semelhança e repetição de alguns motivos musicais, contribuindo para uma fácil identificação das recorrências existentes. Exemplo: intervalo de tom inteiro em todos os finais de estrofe (Fá-Sol ou Lá-Sol).
Diante de todas essas observações tão bem feitas e presentes no trabalho consultado para a redação deste artigo [5], verificamos a existência de um grande desnível entre uma composição gregoriana e uma composição que normalmente é executada nas missas celebradas na maior parte de nossas paróquias
Causa-nos grande tristeza ver a liturgia católica tão vilipendiada e, em alguns casos, até mesmo ultrajada por composições em ritmos de samba, rock, sertanejo etc.
Rezemos a Nossa Senhora pedindo que não desanimemos em nossa batalha pela Missa de Sempre e pela dignidade na celebração Santo Sacrifício da Missa.
Rezemos especialmente pelos padres para que, a exemplo de Nosso Senhor, tenham aquele ardente zelo pela casa de Deus, tão bem expresso pelo salmista: O zelo da tua casa me consome (Sl 68,10).
Lauda, Sion, Salvatorem
Lauda, Sion, Salvatorem, Lauda ducem et pastorem In hymnis et canticis.
Quantum potes, tantum aude, Quia maior omni laude, Nec laudare sufficis.
Laudis thema specialis, Panis vivus et vitalis Hodie proponitur.
Quem in sacrae mensa coenae Turbae fratrum duodenae Datum non ambigitur.
Sit laus plena, sit sonora ; Sit iucunda, sit decora Mentis iubilatio.
Dies enim solemnis agitur In qua mensae prima recolitur Huius institutio.
In hac mensa novi Regis, Novum pascha novae legis Phase vetus terminat.
Vetustatem novitas, Umbram fugat veritas, Noctem lux eliminat.
Quod in coena Christus gessit Faciendum hoc expressit In sui memoriam.
Docti sacris institutis, Panem, vinum in salutis Consecramus hostiam.
Dogma datur christianis Quod in carnem transit panis Et vinum in sanguinem.
Quod non capis, quod non vides Animosa firmat fides Praeter rerum ordinem.
Sub diversis speciebus, Signis tantum et non rebus, Latent res eximiae.
Caro cibus, sanguis potus, Manet tamen Christus totus Sub utraque specie.
A sumente non concisus, Non confractus, non divisus, Integer accipitur.
Sumit unus, sumunt mille, Quantum isti tantum ille, Nec sumptus consumitur.
Sumunt boni, sumunt mali, Sorte tamen inaequali Vitae vel interitus.
Mors est malis, vita bonis : Vide paris sumptionis Quam sit dispar exitus.
Fracto demum Sacramento, Ne vacilles, sed memento Tantum esse sub fragmento Quantum toto tegitur.
Nulla rei fit scissura, Signi tantum fit fractura Qua nec status nec statura Signati minuitur.
Ecce panis angelorum Factus cibus viatorum, Vere panis filiorum Non mittendus canibus.
In figuris praesignatur, Cum Isaac immolatur, Agnus paschae deputatur, Datur manna patribus.
Bone Pastor, panis vere, Jesu nostri miserere, Tu nos pasce, nos tuere, Tu nos bona fac videre In terra viventium.
Tu qui cuncta scis et vales Qui nos pascis hic mortales, Tuos ibi commensales, Coheredes et sodales Fac sanctorum civium. Amen. Alleluia.
Tradução portuguesa
Sião, exulta de alegria, louva teu pastor e guia com teus hinos, tua voz!
Tanto possas, tanto ouses, em louvá-lo não repouses: sempre excede o teu louvor!
Hoje a Igreja te convida: ao pão vivo que dá vida vem com ela celebrar!
Este Pão, que o mundo creia! por Jesus, na Santa Ceia, foi entregue aos que escolheu.
Nosso júbilo cantemos, nosso amor manifestemos, pois transborda o coração!
Quão solene a festa, o dia, que da santa Eucaristia nos recorda a instituição!
Novo Rei e nova mesa, nova Páscoa e realeza, foi-se a Páscoa dos judeus.
Era sombra o antigo povo, o que é velho cede ao novo: foge a noite, chega a luz.
O que o Cristo fez na ceia, manda à Igreja que o rodeia repeti-lo até voltar.
Seu preceito conhecemos: pão e vinho consagremos para nossa salvação.
Deve-o crer todo cristão: faz-se carne o pão de trigo, faz-se sangue o vinho amigo.
Se não vês nem compreendes, gosto e vista tu transcendes, elevado pela fé.
Pão e vinho, eis o que vemos; mas ao Cristo é que nós temos em tão ínfimos sinais.
Alimento verdadeiro, permanece o Cristo inteiro quer no vinho, quer no pão.
É por todos recebido, não em parte ou dividido, pois inteiro é que se da!
Um ou mil comungam dele, tanto este quanto aquele: multiplica-se o Senhor.
Eis a hóstia dividida… Quem hesita, quem duvida? Como é toda o autor da vida, a partícula também.
Jesus não é atingido: o sinal que é partido: mas não é diminuído, nem se muda o que contém.
Eis o pão que os anjos comem, transformado em pão do homem; só os filhos o consomem: não será lançado aos cães!
Em sinais prefigurado, por Abrão foi imolado, no cordeiro aos pais foi dado, no deserto foi maná…
Bom Pastor, pão de verdade, piedade, Jesus, piedade, conservai-nos na unidade, extingui nossa orfandade, transportai-nos para o Pai!
Aos mortais dando comida, dais também o pão da vida; que a família assim nutrida seja um dia reunida aos convivas lá do céu! Amém! Aleluia!
Referências
[1] Pio XII. Encíclica “Mediator Dei”. Disponível em http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_20111947_mediator-dei_po.html. Acessado em 15 de junho de 2015 às 23:18.
[2] Sequência “Terra, exulta de alegria”. Disponível em http://cantosparamissas.wordpress.com/2013/05/27/cantos-para-a-solenidade-de-corpus-christi-3052013-cifras-e-musicas/. Acessado em 15 de junho de 2015 às 23:33.
[3] Monteiro, Ricardo. A Música como Reflexo da Sociedade: História da Música ou Música da História? Universidade Anhembi Morumbi. (s. d.)
[4] Knowles, M. The wicked waltz and other scandalous dances: Outrage at couple dancing in the 19th and early 20th centuries. McFarland. 2009
[5] Teixeira, Thiago Plaça. Música e Beleza em São Tomás de Aquino. Universidade Federal do Paraná. 2012.
[6] http://www.newadvent.org/cathen/09036b.htm. Acessado em 01 de junho de 2015 às 18:50.
[7] Liber Usualis, 1961, Sequência Lauda Sion Salvatorem, p. 945-949.